sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Anticonstitucionalissimamente


DA PRIVATIZAÇÃO DAS ÁGUAS: OU QUANDO A LEI ATROPELA A CONSTITUIÇÃO

por Indignados Lisboa a Domingo, 14 de Agosto de 2011 às 20:21

A 15 de Junho de 2011, dez dias após ter vencido as eleições legislativas, o actual primeiro-ministro Pedro Passos Coelho dá uma entrevista ao Financial Times.[1] Foi através dessa entrevista que o povo português foi posto a par da intenção do Governo de privatizar 49% das águas de Portugal. Segundo este governante, "A privatização não é apenas uma questão de receitas”, sendo sobretudo uma forma de "escancarar" as portas aos investidores não portugueses. "Portugal precisa de investimento para suportar o crescimento, que tem de ser conduzido pelo sector exportador", afirmou. Uma medida justificada pelo actual contexto de crise financeira e pelas medidas de contenção de gastos do Estado impostas pela Troika. Assim, esta medida previa não só minimizar os efeitos do despesismo verificados no sector de gestão/exploração das águas em Portugal, mas também promover a entrada de capital externo nessa área, de forma a consolidar financeiramente o sector e a garantir o serviço.

No entanto, a água é um sector que dá lucro. Segundo notícia publicada no jornal Expresso, no dia 5 de Agosto, as Águas de Portugal tiveram um aumento de lucro de 284% no primeiro semestre de 2011.[2] É referido o estado de endividamento das autarquias na exploração dos recursos hídricos - no entanto, é preciso entender que o lucro das AP já tem destinatários: segundo Pedro Serra, presidente das mesmas, “Este ano vamos distribuir 27 milhões de euros em dividendos aos accionistas, que muito agradecem.”[3]  De notar que os accionistas das AP são, respectivamente, a Parpública SGPS S.A.(72%)[4], a Parcaixa SGPS S.A. (19%)[5] e a Direcção Geral do Tesouro e Finanças (9%).[6] Entidades públicas ou de apoio ao Estado (como o caso da Parcaixa). Ou seja, os lucros revertem para o Estado e ainda assim se fala em buracos orçamentais e despesismo. Afinal, para onde se escoa este capital?

Esta incongruência não é nova, e é sustentada pela lei portuguesa. Esta foi sendo progressivamente modificada ao longo dos anos, preparando e acomodando o caminho para a privatização do sector. O culminar desta caminhada deu-se em Junho de 2008, com o Decreto Lei 97/2008, que estabeleceu “o regime económico-financeiro dos recursos hídricos"[7].

Este decreto-lei considera que a gestão dos recursos hídricos é uma actividade cara, e pretende-se por isso delegar custos em parcerias público-privadas, através de “contratos – programa”. Estes seriam estabelecidos entre a administração central e as autarquias locais, empresas privadas, cooperativas ou associações de utilizadores. Ora, o que se tem verificado desde 2008, é que muitas autarquias optaram por concessionar a exploração das águas a empresas privadas – e não a cooperativas ou associações de utilizadores. Segundo a lei, as autarquias mantêm o direito de realizar as cobranças das tarifas dos serviços públicos de água – que deverão ser actualizadas de forma a “acautelar a recuperação, em prazo razoável, dos investimentos feitos na instalação, expansão, modernização e substituição das infra -estruturas e equipamentos necessários à prestação dos serviços; que promovam um emprego eficiente dessas estruturas e equipamentos na gestão dos recursos hídricos que asseguram; e que garantam o equilíbrio económico e financeiro das entidades que levam a cabo estes serviços públicos em proveito da comunidade”. A água torna-se assim uma mercadoria na plena acepção da palavra, e não um bem essencial.

A administração central compromete-se para além disso a apoiar as empresas com os custos de investimento (prestação de subsídios, concessão de crédito ou bonificação de juros) e com formação técnica e profissional, elaboração de estudos e pareceres, acompanhamento e fiscalização de projectos, entre outras acções. Dito de outro modo, o dinheiro público é investido mas os lucros destinam-se a mãos privadas.

Todo este processo seria fiscalizado pelas Administrações de Região Hidrográfica (ARH), espalhadas de norte a sul do país, “pela Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, pelas autoridades policiais e pelas demais entidades competentes em razão da matéria.”

A lei refere a necessidade de transparência na aplicação das taxas, que devem incidir sobretudo sobre os grandes utilizadores e não sobre os consumidores domésticos, “que provocam custos administrativos e ambientais reduzidos”. A lógica é a de que quem mais gasta, mais paga – “uma tarifa a pagar pelo utilizador final que progrida em função da intensidade da utilização dos recursos hídricos, preservando ao mesmo tempo o acesso ao serviço dos utilizadores domésticos, considerando a sua condição sócio-económica, no que respeita a determinados consumos.”

É contudo fácil de perceber como a lei, uma vez posta à solta, e sem a devida fiscalização, pode dar azo a abusos. Como conciliar o interesse dos pequenos consumidores, e garantir ao mesmo tempo a rentabilidade de empresas privadas? Se o lucro destas empresas é tão claramente defendido, como pode uma entidade fiscalizadora argumentar com uma empresa que lhe diz “aumentámos as taxas de água do consumidor doméstico em 50% porque temos de pagar uma série de infra-estruturas e ainda manter-nos rentáveis?” As autarquias, interessadas em recolher os lucros e (algumas) sem meios para substituir os privados nas suas funções, vão simplesmente deixar de acautelar o bem-comum.

Foi esse o caso recentemente levado a público da empresa Cartágua – Águas do Cartaxo S.A. Esta empresa, à qual foi concessionada pela Câmara Municipal do Cartaxo a exploração e distribuição dos recursos hídricos locais, surpreendeu a população com enormes aumentos nas tarifas de utilização de água – em alguns casos, mais de 100%.[8] A justificação da empresa, apresentada no meio da incredulidade dos munícipes, foi a de que tinha sido feito um enorme investimento e que era necessário pagá-lo. Após dias de intensos protestos, os Cartaxenses confrontaram directamente a autarquia com a situação em Assembleia Municipal.[9] A 27 de Julho, a autarquia cedeu e comprometeu-se a rever os tarifários da água.


Ora, dita a Constituição da República Portuguesa no seu Artigo 80º :
A organização económico-social assenta nos seguintes princípios:

a) Subordinação do poder económico ao poder político democrático;

b) Coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção;

c) Liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista;

d) Propriedade pública dos recursos naturais e de meios de produção, de acordo com o interesse colectivo.

e) Planeamento democrático do desenvolvimento económico e social;

f) Protecção do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção;

g) Participação das organizações representativas dos trabalhadores e das organizações representativas das actividades económicas na definição das principais medidas económicas e sociais.

Assim, se salvaguarda a coexistência do sector público com o privado nos meios de produção, a Constituição afirma a necessidade de os recursos naturais (como a água) serem propriedade pública. Defende ainda a participação dos cidadãos nas decisões com implicações económicas e sociais – como a privatização das águas. Foram os cidadãos do Cartaxo ouvidos neste processo? Seremos nós ouvidos num processo semelhante?

Sendo a Constituição o conjunto de leis soberanas e fundamentais que regem o Estado Português e à qual todas as restantes disposições legais são obrigatoriamente submetidas, não se compreende que um simples Decreto-Lei,a inoperância de entidades fiscalizadoras ou interesses corruptos a possam atropelar ou pôr em causa.

                                                                                          Grupo Políticas a Curto Prazo
                                                                                           Indignados de Lisboa


https://www.facebook.com/notes/indignados-lisboa/da-privatiza%C3%A7%C3%A3o-das-%C3%A1guas-ou-quando-a-lei-atropela-a-constitui%C3%A7%C3%A3o/133267486766997

Sem comentários:

Enviar um comentário